quarta-feira, 21 de maio de 2008

Sons de Cristal (de Alma Welt)

(Transcrevo aqui um conto de minha irmã, a grande poetisa Alma, que ao rever em seu blog "A prosa de Alma Welt", me comoveu novamente até as lágrimas. Quero compartilhar com meus amigos a emoção de beleza que tive com esta pequena jóia, que, a meu ver, não fica nada a dever à obra prima do gênero, de Mario de Andrade "O peru de Natal".)(Lucia Welt)



Volto a lembrar-me, com saudade, das nossas festas de Natal e fim de ano, na estância, durante a minha infância. Dias gloriosos, aqueles, em que me levantava cedo, em manhãs esplendorosas de verão, quase gritando de alegria por existir, e me sentir... tão feliz! As festas, para mim, começavam já nos preparativos, na cozinha, e na sala preparada, sobretudo com a montagem do nosso grande pinheiro de Natal. Matilde era a grande festeira, responsável pelo maravilhoso peru assado, guarnições, saladas e doces. O Vati cuidava da escolha dos vinhos, de nossa própria produção. A Mutti gerenciava tudo, a começar pela decoração da sala e a preparação condigna da grande mesa que nos congregaria a todos. Solange e Lúcia, minhas irmãs, as ajudavam, enquanto eu e Rôdo nos divertíamos em observar e bater palmas, ou simplesmente colher flores e fruir o clima adorável de preparativos natalinos.

Mas recordo particularmente o Natal dos meus treze anos, quando Rôdo, numa grande inquietação de sua libido de pré-adolescente, resolveu criar um pretexto para que eu o visitasse em seu quartinho do sótão, na ante-véspera do Natal, à meia-noite, quando todos estivessem dormindo.

Ali estava eu, como tantas vezes, naquele aconchegante ambiente de quarto de menino, que me fascinava com sua bagunça viril, onde seus gostos se mostravam todos: carrinhos, aeromodelos, miniaturas de motos e barcos, fotos e posters de montanhas e praias, algumas fotos pampianas típicas, de boiadeiros laçando ou lançando a boleadeira em pleno galope, cavalos maravilhosos, tudo o que um menino aventureiro amava, e... uma foto minha, linda, a minha melhor foto, que me enternecia por estar ali, entre as suas coisas amadas.Eu o abracei de uma maneira mais comovida, que o normal, embora sabendo que Rôdo não gostava de sentimentalismos. Mas naquela noite, em especial, por alguma razão eu queria chorar de felicidade de tê-lo como irmão, eu, que não me identificava em nada com minhas irmãs, e nem tinha certeza de amá-las. Puxei-o sobre mim, instintivamente, como uma pequena amante, mas estávamos sonolentos e adormecemos assim, vestidos e abraçados, sonhando com nós mesmos, abraçados, sonhando...

Acordamos sobressaltados pela voz aguda e agressiva de Solange. A megerinha gorda, diante de nós, de mãos na cintura, nos fuzilava com os olhos:

—Ah! Seus safados. Já agarrados de novo! Mamãe vai saber disso! Vocês vão ficar sem peru no Natal e sem sobremesa! Nem vão sentar à mesa, vocês vão ver!

Fiquei envergonhada por ela, não por mim. Pela mesquinharia de minha irmã que insistia em atormentar a minha vida, conspirando contra a minha felicidade, que, afinal, para mim, estava ali mesmo, junto de meu irmão. Retruquei, estendendo meus braços para ela:

—Solange, irmãzinha ciumenta! Queres abraçar-me também? Vem, vem Sol, que eu te farei feliz!

Solange ficou rubra de confusão e cólera, mas retirou-se correndo dali. Eu a desarmara. Olhei para Rôdo e ele rolava de rir, ofegante. Conseguiu afinal, dizer:

­ —Alma, tu tens cada uma! És sempre inesperada. Tu, abraçando a Sol! Não posso imaginar!

–Bem... ela não deixaria. Eu a abraçaria e até a beijaria se com isso eu a conquistasse, e ela parasse de nos perseguir. Por falar nisso, será que já estamos sem peru e sobremesa?

Rimos mais uma vez juntos, e eu estava tão feliz ali, com Rôdo, romanticamente nos braços do meu irmãozinho, que comecei a ouvir os sons da noite de Natal, o ruído dos cristais, das taças de vinho, e dos talheres de prata, das risadas felizes dos familiares que eu amava tanto, que não excluiria Solange, que via sorrindo para mim, gordinha e... até mesmo simpática. Eu não precisava nem mesmo da noite de Natal. Eu estava tão plena e feliz, que ouvia os seus sons de cristal, e não precisava mais que a véspera chegasse. Meu Natal era ali mesmo, naquele momento, presente para sempre, sentindo com meu pequeno seio nascente, as batidas do coração amado de meu irmão.

04/05/2006

(dos Contos Pampianos, de Alma Welt)

Um comentário:

RODOLPHE SALIS disse...

Violentámos a natureza quando matámos as nossas feras

Os homens copiavam os anjos;
Os anjos copiavam os homens
Ambos copiavam a inocência;
A inocência copiava as feras.

As feras devoraram os homens;
Os anjos devoraram as feras.
A inocência vestiu-se de roxo
Pelo luto das futuras eras.

Natália Correia...para a Alma, o Rodo, a Solange...e a LU a...